25 fevereiro 2014

EÇA DE QUEIROZ, SEMPRE!

E o sonho da desforra faz suportar a realidade da catástrofe...

EÇA DE QUEIROZ, A Catástrofe

PÓVOA DE VARZIM, estátua de Eça de Queiroz na praça da Domus Municipalis (fotografias de 20/2/2014). 

01 fevereiro 2014

A Paixão dos Ossos - Urbano Tavares Rodrigues e Ferreira de Castro, memórias, a natureza, a escrita e a vida



Texto -- livre na forma, rigoroso no conteúdo -- a partir de uma conversa com Urbano Tavares Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio de 2013
 
O Ferreira de Castro era um homem com um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele tinha medo do Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito.
            Também nos juntávamos em Lisboa, mas em Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E visitávamo-las todas. Também as árvores? Pode ser, mas das árvores não sei.
            Ele teve outra enorme paixão, a Diana de Lis. Foi correspondida? Não me lembro.
            O Ferreira de Castro… era bom como o pão. Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de chorar. Formámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente em Letras, como eu fui de Vitorino Nemésio.
            O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se num café ali no Chiado, creio que se chamava mesmo “Café Chiado”. Os amigos adoravam-no. Eram mais velhos que nós. Às vezes juntava-me eu, o Armindo Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar, era jovem, muito magro, as raparigas gostavam de mim e umas vieram deitar-me os braços ao pescoço. Ele já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos: “Não percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne, não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um círculo muito próximo.
            Naquela época eu parava mais noutra tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe a dele; mas, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar, era uma situação dramática. E nós compreendemos isso.
            Houve um tempo em que acumulei o trabalho de redação do Diário de Lisboa e d’O Século, onde o Ferreira de Castro também foi redator. Às vezes, à noite, n’O Século havia pouco que fazer. Nessas horas vazias de piquete, eu escrevia contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
            O Cunhal, que também tinha grande respeito e estima pelo Ferreira de Castro, achou belíssima uma intervenção que eu fiz um dia no círculo dos intelectuais do Partido Comunista. Reclamou com a célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou-me para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões do partido, nessa época, decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o Manuel da Fonseca, contava anedotas, toda a gente se ria. Agora querem que eu continue, eu continuo.
            Era a personificação da delicadeza, o Ferreira de Castro, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma vez fui pedir-lhe financiamento para um 1º de Maio, já não sei de que ano, e ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
            Alguns neorrealistas acusaram-no de escrever mal. Muito injustamente. A Lã e a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político assaltado de dúvidas.
            Com o neorrealismo, o socialismo quis evacuar o escritor da obra . Mas o escritor está lá e faz falta.
            A literatura do Ferreira de Castro foi considerada “impura” num período, até hoje, em que se combate toda a obra de empenhamento social e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas. Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil,  que não presta, que é lixo. Ainda há bons escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
            Eu combato o que se está a passar atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por trás dele. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência me despediram e me silenciaram. Uma Pedrada no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio José Malheiros, da Academia das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro recebera duas décadas antes.
           A ele pouparam-no, pelo prestígio internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o atormentava. Nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para contornar a censura.
           E eu tinha uma enorme coragem física. Da última vez em que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem dormir, e quando finalmente pude descansar só conseguia dormir uma hora por dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha obra, tratou-me por doutor e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas o meu não era. Disse-me que só tinha visto sofrer assim tanto o Pulido Valente e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim.  “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me com receio do movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro, que sempre assumiu posição a meu favor.
           Dos poetas, ele conviveu com Ruy Belo e Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”, belíssimo.   O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia. Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro, porque ela o pintava. Morreu estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto, eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
           Não me lembro de pormenores  sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza, com os rios, o campo ou os animais. Foi há muitos anos e esse tópico não era importante. O importante eram as questões políticas e sociais. Mas lembro-me das nossas conversas, das memórias vivas que guardava de Belém-do-Pará e da vida de sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio, desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o seringal para onde emigrou rapazinho. Também isso me suscitou curiosidade dos locais cenário d’A Selva, que é um livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um, fiquei impressionado.
           O Ferreira de Castro tinha uma comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é exatamente uma comunhão mística: é quase mística.


AnaCristinaCarvalho / Maio e Agosto de 2013