31 agosto 2015

Palavras para que vos quero

Com o sentido de dinamizar o blog, criámos em tempos a série "Palavras para que vos quero" com o objectivo de publicar pequenos textos dos membros da nossa Comunidade. Durante algum tempo foram sendo publicados alguns com esta etiqueta, mas depois a ideia foi caindo aos poucos. Assim lembrei-me de lançar o desafio: vamos ressuscitar o tema? Os nossos leitores que tenham textos que gostassem de ver por aqui, podem enviar para mim que eu publico.

Edvard Munch - Tavern in St. Cloud, 1890

O despertar

Acordou lentamente com a cabeça a querer explodir. Demorou a perceber onde estava. Tentou abrir os olhos e o sol que entrava pela janela atingiu-o violentamente como se de um raio se tratasse. A rigidez por baixo do seu corpo fê-lo perceber que não estava na cama. Dolorosamente abriu os olhos e viu que estava no chão da sala, com uma das pernas apoiada no sofá. Apesar do silêncio em casa ser absoluto, sentiu que devia ser tarde pelos barulhos exteriores. Ouvia-se o piano da vizinha do lado e gritos de crianças a brincar no jardim da frente. Levantou-se cambaleando ainda com os efeitos do álcool a fazer-se sentir. Ao passar na entrada viu que a cozinha estava vazia e dirigiu-se para os quartos, percebendo rapidamente que estava sozinho. Quando espreitou o quarto do filho pareceu-lhe que alguma coisa estava errada, tendo a confirmação quando entrou no seu quarto. Alguns dos objectos tinham desaparecido de cima da cómoda, as portas do roupeiro estavam abertas e faltavam roupas. As roupas da sua mulher. Sentiu o estômago a contrair-se. Correu de novo para o quarto do filho, agora totalmente desperto. A maior parte dos brinquedos tinham desaparecido, os armários praticamente vazios, tudo com o aspecto de ter sido esvaziado à pressa. Correu à casa de banho e também ali faltavam escovas, boiões e outros objectos pessoais. No escritório, a secretária da sua mulher parecia ter sido varrida pelo vento, faltava o portátil e havia papeis, lápis e clips espalhados, como se ela tivesse feito uma recolha rápida das coisas mais básicas, numa imensa pressa de partir. Sentiu um vómito súbito e fez um esforço para o controlar. Voltou à sala e só então percebeu a desordem na mesma. Duas cadeiras estavam caídas, havia revistas pelo chão e a jarra com flores habitualmente em cima da mesa grande tinha caído com a água a manchar a superfície. Fez um esforço para se lembrar do que tinha acontecido na véspera, mas o cérebro ainda estava cheio de nuvens pesadas. Foi à cozinha e o caos era total, havia louça partida, bancos caídos, comida espalhada pelo chão e …. sangue, manchas de sangue na porta do frigorífico. Sentiu-se gelar. Cambaleou e teve que se apoiar no balcão para não cair. A imagem da mulher a ser violentamente atirada contra o frigorífico fez-se nítida na sua mente. Lembrou-se do grito e do seu olhar de infinita surpresa antes de cair desamparada no chão. Recordou-se de a ter pontapeado numa fúria incontrolável e quando ela ficou quieta e enrolada sobre si mesma dirigiu-se à sala e simplesmente apagou. E agora estava sozinho. O que tantas vezes lhe passara pela cabeça acontecera. O álcool tinha-o levado longe demais e fizera-o perder o controlo. Olhou para cima do frigorífico e viu a fotografia do filho, a rir numa gargalhada feliz, de olhos grandes e expressivos. Agarrou a moldura, apertando-a contra o peito e desmoronou, caindo por terra. As lágrimas brotaram num soluço incontrolável, percebendo que tinha perdido o que de melhor a vida lhe dera. A raiva contra si próprio inundou-o fazendo-o bater a cabeça repetidas vezes no chão. Ao mesmo tempo começou a sentir uma nova força a crescer dentro de si. Ia lutar contra o maldito vício, ia recuperar a sua família e o seu trabalho. Poderia levar meses, anos, mas iria conseguir. E começou lentamente a levantar-se ...

Custódia (Abril 2009)

10 agosto 2015

"As Horas" de Michael Cunningham, 28 de Agosto, 20h30


"Ainda falta comprar flores. Clarissa finge-se exasperada (embora goste de fazer recados deste género), deixa Sally a limpar a casa de banho e sai apressada, prometendo voltar dentro de meia hora.

Isto passa-se na cidade de Nova Iorque. No fim do século XX.

A porta do vestíbulo abre-se para uma manhã de Junho tão bonita e limpa que Clarissa se detém no limiar como se deteria à beira de uma piscina, a admirar a água cor de turquesa beijando os azulejos, as redes líquidas de sol oscilando no fundo azul ..."

in "As Horas" de Michael Cunningham, capítulo "Mrs. Dalloway"


05 agosto 2015

«AS ONDAS» DE VIRGÍNIA WOOLF-FLUXO DE CONSCIÊNCIA


 
                             

«O romance “As Ondas” abandona a estrutura tradicional e a narrativa do romance Inglês que vigorava desde Henry Fielding (XVIII). Em vez de narrar de fora as acções dos personagens, Virginia Woolf entra nas suas mentes e relata os seus pensamentos e percepções, enquanto eles ocorrem.Virginia Woolf forma os personagens de dentro para fora, e uma das preocupações do romance é o modo como as personalidades e sensibilidades são formadas pela relação com os outros. Os seis personagens estão interligados de tal forma que os tempos vividos por eles são os mesmos e a memória é deflagrada por algo que presenciam conjuntamente, ou por uma situação semelhante pela qual todos estejam a viver, não havendo por isso personagem principal. Como exemplo, aponta-se o momento em que vão à escola pela primeira vez, e cada um dos personagens apresenta a sua visão da situação, ao descrever e analisar o que estão a viver. As informações sobre as situações são dadas aos poucos, subjectivamente, de acordo com as percepções e os sentimentos individuais.

Ao invés de resumir para nós o que os personagens vêem , pensam e fazem , relatando a partir do exterior , ou arrumar os pensamentos dos personagens em padronizadas frases claras , Woolf tenta dar ao leitor a impressão de como é estar dentro da cabeça dos personagens. Em cada narrador/personagem , temos uma combinação de pensamentos, sensações , memórias , descrições , acções e falas, e devemos separar por nós mesmos o que é puramente "interno" e o que é uma combinação de "interno" e "externo". O monólogo interior, que internaliza o conceito de fluxo de consciência, apresenta a sequência de pensamentos de um personagem em actividade sempre contínua e marcada por influências externas e internas, como sentimentos e sensações presentes e passadas, ou a expressão racional de uma ideia. Essa técnica narrativa, ao explorar o movimento da consciência e capturar o pensamento no momento mesmo de sua concepção, traz inúmeras possibilidades associativas e uma imagem mais realista da psicologia.

O conceito de fluxo de consciência (stream of consciousness) , foi desenvolvido por William James em “Princípios de Psicologia” (1890), em que explica a consciência como um fluxo contínuo ao estabelecer relações entre eventos presentes e passados, num movimento ininterrupto de sentimentos, impressões, percepções e pensamentos. Associado à narrativa woolfiana, esse conceito transforma-se em técnica narrativa.

Percebe-se, então, como toda a estrutura do romance está baseada no movimento das ondas, que podem representar, também, a própria técnica narrativa do fluxo de consciência, ou seja, o próprio movimento do pensamento das personagens, num ir e vir incessante e infinito.»

Por Davide Freitas, 30 de Julho de 2015

03 agosto 2015

Virginia Woolf's Suicide letter to Leonard Woolf As Horas, 2002





Entrando em Agosto,  fazendo a ligação entre o livro do mês passado e o deste mês de veraneio, aqui fica um excerto do filme (a carta e o suicídio de Virgínia Woolf) «As Horas» de 2002, realizado por Stephen Daldry.O mesmo que conferiu o Óscar de melhor actriz a uma irreconhecível Nicole Kidman, adaptação do livro com o mesmo título de Michael Cunningham, vencedor do Prémio Pulitzer de 1999. Diálogo aberto entre obras e o irresistível apelo da adaptação cinematográfica (intertextualidades, Manuel?). Pesos muito pesados para este Verão, mas que prometem.